No dia em que o país comemorou 100 anos de República, a Póvoa de Varzim retrocedeu um século e, pelas palavras do historiador João Francisco Marques, recordou como o concelho recebeu o derrube da monarquia e a instalação do novo regime. A conferência decorreu ao final da tarde de ontem, no âmbito de “Na Maré da República”, o programa comemorativo do centenário na Póvoa de Varzim.
“A Primeira República na Póvoa de Varzim” foi o tema desta conferência, tendo João Francisco Marques se debruçado sobre os primeiros 16 anos de República, sendo a imprensa “a fonte primária da pesquisa a que me dediquei”.
Numa altura em que ainda era vila, a Póvoa de Varzim era já uma importante estância balnear marcada pelo progresso. Os números não são inteiramente exactos, mas estatísticas da época apontam para 16 mil habitantes, sendo que no Verão recebia mais três dezenas de milhar de pessoas. Com a emigração para o Brasil, o crescimento do mercado do peixe, o sucesso das terapias dos banhos e das zonas balneares, o proliferamento de cafés e salas de espectáculos, ajudados por uma via-férrea que ligava a Póvoa a vários pontos do país, o concelho estava em franco desenvolvimento, motivando a iniciativa privada e o investimento. Foi neste contexto que a Póvoa de Varzim recebeu, com surpresa, o anúncio da Implantação da República, noticiada em primeiro lugar pelo jornal Estrela Povoense, a 9 de Outubro, ainda que este jornal tivesse dado a notícia em segunda página, “como comentário político circunstanciado”. Já O Comércio da Póvoa de Varzim ofereceu, na sua edição de 10 de Outubro, um relato mais minucioso, dando, à notícia, “prioritário destaque”. Aliás, ontem e no âmbito das Comemorações, foi distribuída uma reprodução da edição de 10 de Outubro de 1910 deste jornal.
Entretanto, e numa altura em que a circulação de informação era limitada, chegou, dias após o 5 de Outubro, o telegrama que confirmava o derrube da monarquia, enviado para o Governador Civil de Évora, “que aqui passava um tempo de Verão”. A Comissão Municipal Republicana deslocou-se então ao Porto, de onde regressou ao final do dia, sendo recebida, à saída do comboio, por “adeptos, curiosos e muita gente”, formando cortejo pelas ruas da Póvoa. Nos cafés que tinham pequenas orquestras tocava-se A Portuguesa e A Marselhesa.
David José Alves, Presidente da Câmara Municipal, eleito pelo Partido Regenerador, figura poveira de extrema importância nos fins da monarquia e princípios da República, “por ser uma figura de carisma, que marcou a terra”, leu, no seu Gabinete da Câmara Municipal, a Proclamação da República subscrita por Afonso Costa, acrescentando que “muito desejava que o novo regime fosse benéfico para o país e para o progresso da Vila”. À varanda da Câmara Municipal, içou-se a Bandeira da República e o secretário da Câmara, Castro Alves, repetiu a leitura da Proclamação “sobre vibrantes gritos de entusiasmo”.
Sousa Campos é nomeado administrador do concelho, foram empossados os Vereadores, “diz-se que eleitos mas penso que foram eleitos pelo agrupamento que representava o novo regime”. A tomada de posse decorreu, no entanto, com assentimento popular e da primeira reunião de Câmara saem três medidas: a nível interno, decide-se a afixação, na porta, no final de cada reunião, de um resumo das deliberações tomadas; propõe-se a alteração da toponímia local, de forma a homenagear Miguel Bombarda e o Almirante Cândido dos Reis, duas figuras republicanas; e, de forma a tornar a Póvoa de Varzim mais higiénica, instituíram-se dois prémios com vista a galardoar os lares mais asseados e também os jovens que, quando se apresentassem para comer n’A Beneficente, o fizessem no melhor asseio.
A proposta de alteração da toponímia foi uma das razões de divergências na Câmara. Divergências essas amplificadas pela imprensa local, já que cada jornal reflectia, nas suas páginas, a tendência política que defendia. Entre eles contava-se A Estrela Povoense, jornal católico, monárquico-regenerador, clerical, então da directoria de Bernardino Gomes da Ponte; O Poveiro, semanário independente, liberal, aparecido em 1910, cuja direcção cabia a Emídio Ramos; O Intransigente, propriedade de João Baptista de Lima, semanário que logo se assumiu como republicano independente. “Publicou a 6 de Outubro de 1910 uma edição extraordinária de quatro páginas a noticiar a proclamação da República”, acrescentou João Francisco Marques, que referiu ainda A Propaganda, jornal de Cândido Landolt.
As rupturas políticas começaram também a surgir. Disso é exemplo o afastamento da cena política de Sousa Campos, por discordar da nomeação de Santos Graça para administrador do Concelho. No entanto, este último foi alvo de intrigas, “objecto de uma devassa que levou mesmo à deslocação de um delegado do Ministério Público à Póvoa” e atacado por directores de jornais como Baptista de Lima e Cândido Landolt. Tal gerou uma cisão no Partido Republicano a ponto de Baptista Lima fundar o Centro Democrático Republicano Poveiro para se contrapor ao Centro Democrático Republicano secretariado por Santos Graça.
A Póvoa de Varzim estava, poucos anos após a Implantação da República, dividida politicamente, com os jornais a reflectirem “esses novos alinhamentos”. No entanto, a I Guerra Mundial veio alterar essa situação, sendo que a imprensa poveira tomou uma posição patriótica. Ao mesmo tempo, surge nesta altura uma nova geração de jovens políticos, como Joaquim Graça, que foi médico militar na Flandres, ou Vasques Calafate. Os políticos desligam-se da política nacional e dão atenção “aos problemas da terra”, preocupando-se com os planos cultural, económico e urbanístico da Póvoa de Varzim. É nesta altura que surgem novas escolas e colégios, é fundada a Escola Industrial Rocha Peixoto e a Universidade Popular estende-se à Póvoa devido à acção de Leonardo Coimbra. A nível urbanístico, constroem-se casas apalaçadas e planeia-se a construção de um hotel e casino. No plano económico, surgem os barcos a motor e as chamadas “Artes Novas”. É também nesta altura que se dá o repatriamento dos poveiros a viver no Brasil, por se negarem a aceitar a nacionalidade brasileira, condição obrigatória para ficar naquele país. A Póvoa de Varzim conhece impulso económico, “timidamente, a indústria da Póvoa de Varzim alargou-se”. Em síntese, João Francisco Marques notou que “se não esmoreceram o progresso e a iniciativa da sociedade civil no longo período que se seguiu ao 28 de Maio de 1926, então sobre a égide do Estado Novo, manteve-se dominante a mentalidade conservadora da gente poveira”.
No final, José Carlos de Vasconcelos, que enquanto membro do Concelho Editorial d’ O Comércio da Póvoa de Varzim é um dos promotores deste ciclo de conferências, não deixou de salientar que a intervenção de João Francisco Marques “põe em destaque a importância da imprensa local para conhecer a história das terras”. O jornalista lembrou que O Comércio da Póvoa de Varzim “é o mais antigo jornal republicano de Portugal, nunca cessou a sua publicação e manteve-se sempre fiel aos seus princípios e valores”.
José Macedo Vieira, Presidente da Câmara Municipal, fez a pergunta que tem feito a todos os que já participaram neste ciclo de conferências. “Onde vai parar esta República?”. Para João Marques, a resposta está na união e na responsabilidade para que se ponha em prática o verdadeiro republicanismo, aquele que luta pelo bem comum.
Esta conferência decorreu no âmbito de um ciclo organizado pela Câmara Municipal e pelo jornal O Comércio da Póvoa de Varzim e que já trouxe à Póvoa vários nomes do panorama nacional, tais como Mário Soares, Augustos Santos Silva, António Nova, Miguel Veiga e Alfredo José de Sousa. Também ontem foram inauguradas três exposições sobre a Implantação da República e que estão patentes na Biblioteca, no Museu e no Arquivo Municipais.
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